terça-feira, 13 de setembro de 2011

63- CAPITULO FINAL DO ROMANCE "VIAJEM DE ORFEU AO FIM DO MUNDO"



Ao entardecer do dia seguinte, trinta ménades muito embriagadas, em pleno furor sagrado, armadas com tirsos e com paus, comandadas por uma vingativa Aglaonice cheia de cicatrices, invadiram de repente o acampamento de Orfeu, quando estava começando a tocar para um grupo de cinco garotos.

-Orfeu, apodrecido pederasta mentiroso! –gritou Aglaonice colérica- Esse é o amor fiel que guardas a tua mulher, tão jovem falhecida! Como tu amas sua lembrança, desprezas às mulheres feitas, porém, consolas-te com os efebos! –avançou para ele batendo-o fortemente com o tirso em um ombro -Viadão! Pervertido!- e bateu-o outra vez, quebrando-lhe a lira que ele tinha entre as mãos.
-Pederasta! Corruptor de meninos!- gritou a obesa Metis, lançando-lhe uma grosssa pedra que feriu-o no pescoço antes de que ele pudesse falar para defender-se. Isso foi o sinal para aquela manada, todas as ménades juntas, começar a pegar pedras e paus e lançar-lhos contra ele entanto que o insultavam. Os cinco efebos perderam-se as pressas, monte abaixo, em diferentes direções.

Orfeu, atingido por uma pedra em pleno rosto, caiu de joelhos. Da grota saiu correndo o jovem mudinho loiro, cruzou ante as desenfreadas bacantes e abraçou-se a ele, querendo protegé-lo com seu próprio corpo. Aglaonice pegou um pau grosso das mãos de outra ménade, xogou-se sobre ele com raiva e esmagou a sua nuca. Caiu imediatamente ante Orfeu..

-Eurídice!- gritou ele, abraçando com paixão o cadáver do efebo. Foi o último que disse; atingido na cabeça por muitas pedras, ficou tendido para sempre sobre seu amante. 


Aglaonice parou às ménades com um alarido, estendendo os braços em aspas. Deixaram de cair pedras. Então avançou para os mortos, com uma lucidez súbita se lhe revelando no méio das trevas da sua fúria vingadora. Afastou a um lado o corpo de Orfeu, volteóu o do efebo e rasgou a sua túnica, que deixou ao descoberto uns seios femininos apenasl incipientes, tal como os de uma menina. Após isso, levantou-lhe a túnica por abaixo e ficou lívida.
-Eurídice! -gritou- Eurídice! Eurídice! Eurídice! -repetiu, entanto que examinava aquele corpo por toda parte com assombro total -Eurídice! -repetiu erguendo-se e dando voltas sem sentido ao redor dos cadáveres sobre o chão ensangretado, cheio de pedras e paus, enquanto as ménades começavam a tocar seus instrumentos e a gritar "Evoé!" sem entender o seu desvarío.

-Orfeo e Eurídice! -gritou ante os corpos, espantada- Unidos por mim para sempre! -e de novo xogou a correr despavorida, ouveando como uma loba louca montanha abaixo, com sua túnica revoando atras dela, asas fantasmaiss, ao mesmo tempo em que as ménades iniciavam a sua dança mais selvagem, aquila na que despedaçavam os corpos sacrificados. 


O sol poente tornava vermelho todo o horizonte, cujas nuvens semelhavam uma porta através da qual um par de estilizadas figuras, unidas pelas mãos, estivessem ascendendo juntas para o alto.


Verão -Outono 2003. 
Revisado em 2012
Manuel Castelin

Cap de Creus, Finisterre, Vigo. Espanha




CONVIDAMOS AOS ESTUDIOSOS A ENTRAR NO GLOSSÁRIO 

62 (8)- PAIXÃO E MAGIA

PAIXÃO E MAGIA


Anónimo Anónimo

Aglaonice esejava poder contar tudo a Metis, mas tanto ela como Hebe achavam-se profundamente adormecidas em suas camas. Um grosso ronquido vinha, de vez em vez, da estância contígua, onde encontravam-se três efebos deitados, compartilhando um único camastro grande de palha. 




Despiu-se, deitando na cama que tinham-lhe reservado, mas foi impossível dormir. A luz da lua filtrada, a excitação, os ronquidos. Deu mil voltas, lembrou muitas vezes quanto acontecido aquela noite, chorou, riu, imaginou outras possibilidades, tentou acalmar sua excitação se acariciando, como se fosse Orfeo quem a acariciasse, mas só conseguiu mais se excitar.



Pulou da cama, quis beber mas, no último momento, deixou o jarro. Finalmente, abriu sua mochila e tirou dele o contendor da Divina Ambrosía, que tinha sido devidamente preparada, filtrada e consagrada por ela mesma durante a última bacanal.




Traçou mentalmente a seu  redor um círculo ritual de proteção, encomendou-se a Dionísio e tomou uma dose suficiênte como para poder fazer seu trabalho mágico.

Sentada na cabeceira da cama, mantendo-se em contato com seus inseparaveis amuletos e talismâs, esperou à força subir, enquanto desenhava uma cena animada na sua imaginação. 




Visualizou-se erguida enfrente da sua árvore de poder, e à árvore convertida em Orfeu. Ampliou até ele seu círculo para englobá-lo. Orfeu olhava-a agora, como acordando de um mau sonho, nu e atado à árvore com mil nós.
Ele olhava-a como se fosse a primeira vez e reconhecia nela todas as qualidades e formas que amava em sua esposa morta. Ela não sabia como eram, mas a Lua sim, a Lua todo o sabe. Os raios da Deusa desciam sobre ela e a enfeitavam com a aparência de Eurídice. Banhada em resplendores lunares, imaginou-se a Orfeu vendo a Eurídice nela. 


Consciente do seu poder, abraçou-se mentalmente à sua árvore, como tantas outras vezes, fundindo-se com ela.
Viu-se a si mesma envolvida em uma ligeira túnica, transfigurada entre veus de prata, cruzando, ligeira como um vagalume, o caminho ascendente que separava a casa de hóspedes da caverna de Orfeu, chegando à porta, a transpondo, rebasando com cuidado o cuartinho que havia junto à cozinha, para não acordar ao pobre mudo.


 imaginou-se se aproximandolentamente ao fundo da grota, onde estava o leito do músico. visualizou-lho durmindo, talvez sonhando com sua esposa morta, nu baixo o lençol. 





Observou-se chegando ante o leito, despojando-se da túnica em pé, devagar, baixo os raios lunares que filtravam-se do alto do muro. Justo então Orfeu acordava, olhava-a e dizia “Eurídice!”... O que seguia depois era demassiado formoso para ser contado. 


Seguiu sonhando desperta enquanto o trance ia-elevando-a aos poucos, libertando-a do encorrentamento às habituais percepções humanas.

Chegou por fim a náusea e a baixada angustiosa aos níveis instintivos animais e vegetales, aos inconscientes mundos minerais, ao plano da pura energia viva despregando-se ou replegándose de maneira automática, em ritmos alucinantes sobre um espaço sem limites, a velocidades que causavam vertigem.
Mas ela era uma psiconauta avançada. Inspirou profundamente, pronunciou a Palavra e visualizou sobre o caos de geometrías inconexas o Emblema que a ligava com o mais poderoso de si mesma. Imediatamente, a vibración descendente fez-se ascendente, ao mesmo tempo em que as geometrías começavam a organizar-se em espirales ao redor do centro sólido fixado no vazio.

Quando começou a poder controlar seu ritmo interno, seguiu repetindo as mesmas cenas preparadas muitas vezes, lhes dando forma nítida no astral, reforçando mais e mais o encantamento. Fazendo de sua vontade um princípio de manifestação, gestando a realização passo a passo.





Por fim sentiu que seu desejo já era plenamente um com o desejo da Deusa, como quando, a um só gesto seu, o coro de ménades sujeitas a ela pelo cordão umbilical de prata, arrancava a dançar nas asas do delírio ou ficavabam quietas, inertes e concentradas como estatuas, até que seu grito punha-as a dançar de novo “Não por mim, Senhora, não por mim nem para mim, mas para que seja feita tua obra e tua glória.” Então levantou da cama,  vestiu a túnica e saiu à trilha, segura do seu poder, baixo a mirada branca da lua imperatriz.





Quando chegou, silenciosa, atenta e ilusionada, ante o camastro de Orfeo, se deu conta, de repente, de que não dormia só. Baixo o lençol, seu peito e seu ventre estavam colados às costas de outro corpo que seus braços mantinham abraçado. Ficou de pedra ao ver-lhe a cara. Era um efebo. O garotinho mudo. 


Saiu da gruta de puntilhas, como um fantasma. Caminhou sem inteirar-se por onde caminhava até que encontrou o caminho que baixava à casa de hóspedes. Então xogou-se a correr cegamente montanha abaixo; seu túnica, médio desprendida, ondeaba depois dela baixo o claro de lua como umas asas. Correu e correu enloquecida, sem olhar onde calcava, até que tropeçou, deu várias voltas rodando, se feriu, foi parar a um matojo de espinos, quase nua, ensanguentada. 





Só então abriu a boca e soltou um longo, longo, doído e penoso lamento.

Aos lobos do Rhodope quase pareceu-lhes um aullido mais de uma loba em cío

62 (7)- VÉSPERA DE LUA CHEIA



VÉSPERA DE LUA CHEIA       

A sacerdotisa sentia-se tão excitada aquela tarde, que conveio com suas colegas e com Orfeo passar essa noite na casa de hóspedes para desfrutar juntos da véspera da Lua Cheia, já que, na seguinte, se celebraria uma grande festa dionisíaca junto ao rio Hebro, que teria que dirigir em pessoa. 
Após o anochecer e muito bem arranjada e perfumada, com uma fita de prata ciñendo sua frente, conseguiu que Orfeo a acompanhasse a ver a saída da lua em uma acumulación de enormes rochas graníticas que tinha em um saliente do Rhodope, a curta distância da gruta. 

Segundo o disco de Artemis começou a assomar rojizo depois das montanhas, ela percebeu como todas suas potências femininas a possuíam em uma inundação ascendente. Sentiu-se brilhante, formosa, atraente, caçadora, feiticeira e poderosa, e no melhor dos palcos e dos ciclos para exercer seu fascinio. Concentrou-se no espelho da lua, deixou que saísse de sim sua magnetismo como um fluído rosado e vaporoso que o envolvesse e impregnase tudo em seu meio, e imaginou sensivelmente a Orfeo captado por ele, igual que uma abeja pelo perfume da flor, tocado em seus instintos, perdendo o controle, avançando para ela, besándola, a abraçando, derritiéndose cálidamente nela. 


Mas decorriam os minutos e nada disso ocorria, e saiu de sua concentração para o olhar de reojo. Encontrava-se em pé, a seu lado, paladeando com intensidade a beleza da lua. Mas sem percatarse ou sem querer assumir que a lua se personificaba nela esta noite para amar ao sol nele. Então decidiu olhá-lo diretamente.

O bardo recolheu a mirada e fez-lhe uma inclinação apreciativa com a cabeça, na que leu que se encontrava embriagado pela beleza sagrada do momento e que ela fazia parte dessa beleza como mulher. Esperou anhelante a que avançasse e a tocasse, mas não o fez, de modo que lhe tendeu sua mão.


Ele deu um curto passo e envolveu nas suas a mão feminina, sua mirada na dela durante um longo momento, depois levou seus dedos aos lábios e os besó, com respetuosa doçura.


Então olhou-o como se Orfeo fosse sua árvore de poder e acariciou suavemente sua bochecha, chegando mal com seus dedos aos cabelos. Era o gesto mágico longamente ensayado, imaginado e configurado no astral, para que o bardo perdesse toda discreción e caísse baixo seu encanto. Mas, em lugar disso, ele, muito tranqüilamente, a tomou pelo ombro e a atraiu a seu custado, voltando a olhar para a lua, como se quisesse que ela fizesse o mesmo e que todo ficasse em uma emoção estética compartilhada por um par de bons amigos.


Passou o tempo naquela posição. Passou tempo a mais. Sua magia não surtía efeito, e seu entusiasmo se congelou. Sentiu-se ofendida de que todo ficasse aí, se separou dele uns passos e dirigiu sua cara para as rochas, cheia de raiva, desejando loucamente que ele voltasse à tocar para ter um pretexto para o recusar, ou o golpear, ou abofetearlo, ou o matar. Mas ele ficou onde estava, em silêncio.

Finalmente, deixou-se cair sentada em uma peña e deu saída a sua frustración, permitindo que umas lágrimas silenciosas se deslizassem por sua bochecha. Isso a aliviou e rebajó seu furor; também comoveu ao homem, que se sentou a seu lado, a curta distância, como querendo lhe dar companhia e consolo sem a tocar.
Aguardou a ver se outras lágrimas e um sollozo, desta vez fingidos, produziam algum efeito. Ele começou a falar com muita doçura:

-Aglaonice, tão bela que me dói tua beleza, tão alta mulher, tão artista, tão admirable.
Ela soluçou outra vez.
-Tão querida para mim, tão belos nos dias em que me brindas o prazer de tua companhia. Obrigado por eles, amiga.
Sentiu-se melhor, teve a esperança de que as coisas se arranjariam.
-Aglaonice, tão querida, tão deseable... Mas não posso te amar com todo o ser, como mereces. Meu coração pertence por completo a outra mulher.

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     Ficou surpreendida, não esperava isso -Qual mulher?- Perguntou com um gemido 
 Ele esteve em silêncio um momento. Depois disse: 
-Minha esposa, Eurídice. 

           
Aglaonice regressou sua mirada para ele, com a boca aberta, estranhada, mas, ao mesmo tempo, se aliviando. Orfeo estava preso de uma lembrança. Uma rival morrida não era rival.
-Orfeo, eu compreendo teu amor e tua dor, mas Eurídice morreu faz anos.
-Não está morta para mim, sela segue muito viva.
-Ela não tería gostado que ficasses preso de do passado, Orfeo. Se eu fosse tua esposa e me morresse, não quisesse te deixar escravo de uma obsesión. Te quereria ver feliz, refazendo tua vida com outra mulher.
-Aglaonice, não podes o compreender, não posso to explicar. Ela não está morrida para mim, a cada dia o amo mais.

-Oh, pobre meu! -se enterneció ela, o abraçou- Pobre meu!
Ele aceitou o abraço, mas não o devolveu.

-Não digas pobre meu, sou muito feliz com esse amor.

Ela abraçou-o mais forte. Agora sentia-se muito bem. Orfeo estava doente da alma, ela o curaria. Em muito pouco tempo recuperou toda sua segurança.
Olhou-o bem perto e sorriu, enquanto se enxugava uma lágrima. 









-Achei que tu não gostavas de mim...-, soluçou, mas já era um soluço de alegria.


Ele a abraçou desta vez com verdadeira ternura. 
-Como não ia gostar! Qualquer homem gostaría de ti, Aglaonice, mas já estou-te dizendo o que sinto... Faz favor, não deixes de me dar tua amizade... Há outras classes de amor que nós podemos compartilhar.
            -Sempre te amarei, Orfeu, sempre te amarei, ainda que amasses a outra. Meu amor por ti não é posesivo. Amo-te e basta. Sempre te esperarei.
      Ele a olhou, preocupado. Não queria que se comprometesse dessa maneira, não queria obsedes impossíveis de satisfazer, mas já era muito que se tivesse consolado. Pouco mais podia-se fazer essa noite. Deu-lhe um último abraço.
A lua já clareaba alta no céu.
-Vamos-nos a descansar, Aglaonice, começa a fazer frio, vamos-nos amiga.

Apanhou-a pelo ombro, como para lhe dar calor, e começou a caminhar a seu lado devagar, para seu acampamento. Ela ainda tinha a esperança de que acabassem a noite descansando juntos... ainda que não tivesse nada mais entre eles. Mas quando estiveram à vista da gruta, ele soltou
- seu ombro. 

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Já todo mundo retirou-se a dormir; vem, acompanho-te até a casa de hóspedes.

O caminho estava  claramente alumiado, em muito pouco tempo chegaram à porta do cobertizo. Ela ainda esperava algo, mas a despediu com dois beijos nas bochechas e um sorriso doce. -Boas noites, amiga querida, que tenhas belos sonhos-. E deu um par de passos para atrás, ainda que ficou olhando-a.


Não queria dizer boas noites, abriu a porta do cobertizo e a manteve assim um momento, como o convidando sem o convidar a que a cruzasse com ela. Ele não se movia. Ela passou adentro, lentamente, e foi fechando a porta muito pouco a pouco, olhando até o final.
Apoiou-se na parede de dentro e esperou, mas ele não entrou. Escutou seus últimos passos afastando-se. Sentia-se apaixonada como uma moçinha.

61(6 )- COMPAIXÃO MAGISTRAL

COMPAIXÃO MAGISTRAL

Uma tarde que se encontravam tocando juntos ante a gruta do vate, ao mudito recolhido por Orfeo se lhe ocorreu se unir a eles com sua flauta. Isto supôs uma verdadeira ousadia por sua vez, já que era muito tímido e, pelo geral, quando tinha visitantes diante, costumava se manter discretamente apartado, ainda que colaborando todo quanto podia, como faz um bom criado.
Não acompanhou mau ao grupo durante um par de canções bem conhecidas, mas depois Metis propôs um hino que tinha certa complicação, e o pobre rapaz cometeu uma falha de tom tão audible, que as três ménades se jogaram a rir e ele ficou tão colorado e confundido que, por um momento, pareceu querer se marchar.


Surpreendentemente, Orfeo levantou-se de seu lugar habitual, sentou-se aos pés do infeliz e recomeçou a peça no mesmo tom em que o efebo a tinha abordado, convidándole com os olhos a que lhe seguisse. Ele o fez e a maestría do vate conseguiu, não só que aquela variação não desmereciera a dignidade do hino, senão que a realzara.
Também com a mirada, convidó a Aglaonice, Metis e Hebe a que se unissem no mesmo tom, o afirmou no coletivo, e depois dirigiu ao grupo tudo para tons mais altos, até que se recuperou a forma originaria da canção. Quando já todos fluíam nela, baixou o tom com um sorriso, grau a grau, e os devolveu à variação alterna incorporada pela falha do mudito, acabando com um dinâmico redemoinho musical que ia e vinha da variação ao original, acima e abaixo, em escalas bem contrapunteadas, as quais se fundiram em um final espléndido.


Todos estalaron em uma livre gargalhada de satisfação depois. Aglaonice estava admirada do virtuosismo audaz e do amor com o que aquele bardo de bardos tinha convertido um erro em uma lição de arte, devolvendo, ao mesmo tempo, seu autoestima e dignidade a seu jovem parceiro.
            

62 (5)- A FESTA DO DESENFRÉIO




A FESTA DO DESENFRÉIO


Nas cerimónias dionisíacas Aglaonice liderava com brío ao  seu grupo de bacantes na intimide secreta dos bosques, durante as quais, após ingerir uma mistura de cerveja de hera e diferentes hongos visionarios, cantavam e dançavam dando renda solta ao instintivo, até entrar em um jogo no que tudo estava permitido.

 No momento de maior embriaguez, as ménades descuartizavam vivos alguns animais selvagens, salpicavam-se umas a outras com o sangue, pasando-se  de mão em mão os despojos, enquanto riam e riam e se abraçavam, tiñéndose de vermelho, os rasgando crus a dentelladas sem lhos engolir, para provocar o afloramiento das identidades mais arcaicas do próprio ser à mente superficial, desde as profundezas abismais daquele subconsciente coletivo onde a Deusa tanto era dadora de vida como dadora de morte.



Era uma evocação das cerimônias mágicas das antigas matriarcas na passada Idade de Pedra e uma reação de rebeldía contra o Império do frío Mental-Intelectual, da impositiva Razão Apolínea trazida pelo Patriarcado, cerimónias vedadas baixo pena de morte à contemplación dos homens, excepto àqueles iniciados de toda confiança que aceitavam travestirse para viver femininamente os sagrados mistérios da Grande Mãe, nos que as sacerdotisas se entregavam ao espírito de seu divino salvador, Dionisio, o eterno menino deus que todos levamos dentro, para viajar às dimensões profundas do ser, cavalgando o trance induzido pelo vinho quitapenas e as plantas de poder.
Dançavam cheias de místico entusiasmo por sentir a fusão com o infinito, abertas a ser fecundadas e inspiradas lucidamente por seus próprios mestres interiores, os espíritos da natureza, a quem a mulher sempre esteve mais próxima que o homem; os sábios e amorosos aliados e guias astrales, as serpentes de sabedoria oracular que tinham ensinado às primeiras recolectoras a arte e a ciência de se fazer semelhantes à Deusa.







No mais intenso do turbilhão e de costas à fogueira, coberta com uma pele de loba e rodeada de perfumados vahos de incienso da Síria, Aglaonice dirigia com sua flauta e seus movimentos a todos os demais instrumentos de vento, desenhando uma sinuosa melodia espiral sobre a noite, a contrapunto do retumbante compás circular que marcavam os panderos, enquanto ao redor dela e do fogo rondaba freneticamente o embriagado coro de mulheres vestidas com longos peplos de muitos pliegues, que deixavam os muslos ao descoberto ao dançar. 


Giravam recubiertas de moteadas peles de corza, coroadas suas cabeças de heras e culebras, brincando e aullando na ampla roda, seguidas de suas soltas cabelleras e de suas sombras projetadas, tal como se os seres invisíveis da floresta estivessem participando com elas em sua dança remolineante, dança na que as energias individuais da cada uma delas se convertiam em uma sozinha sinergía multipotenciada de excitação orgiástica que ligava de forma ascensional com o inefable, com a fonte subconsciente da alegria mais simples e mais vital, sem fréio nemhum.

Era a terapia catárquica do desvarío provocado, aceitado e gozado de comum acordo, da subversión da normalidade, da sub-realidade, da volta à infância lúdica da espécie. Era uma terapia sagrada que tinha a virtude de desencadear das culpas do passado e das preocupações do futuro, que as punha integralmente no presente instantáneo, aqui e agora, a plena intensidade de sentimento, na única realidade sensível... Que transmutaba todas as tristezas e nostalgias, que proporcionava uma família e uma religião comprensivas e cúmplices às almas solitárias, que fazia sentir prazer e poder no delírio da agitación caótica e da gargalhada liberadora... Que desordenaba os esquemas habituais, que apagava por uns momentos a voz tirana da lamentosa razão quotidiana, aquela que proclamava machaconamente a insulsez e a mediocridad da existência, especialmente por ter que viver em um mundo no que as mulheres perdiam a cada dia maiores parcelas de poder. Suas avós estariam envergonhadas delas, se o vissem.
Elas eram a ativa resistência de um milenario império da intuición feminina contra o quadriculado estilo de pensamento, a vulgaridad e as insufribles limitações que os gregos estavam trazendo ao mundo. Juntas, organizavam ruidosas protestos, e até destrozos, contra qualquer ofensa a seu gênero, contra os extranjerismos, contra as modas helénicas, contra qualquer tentativa de reformar e corromper a ordem e os valores que, desde sempre, sustentavam a harmonia da vida. Inclusive tinham recorrido às vezes à violência, humilhando ou apaleando a homens conhecidos como maltratadores. 


Elas eram o espírito de dignidade de seu sexo enfrentado àquele rudo e crescente machismo que só a coação das espadas e os paus sustentava, e que pretendia rebajar e degradar sua condição. Elas eram a família promiscua e tribal de sempre, construída livremente sobre as afinidades espontáneas do coração, enfrentada ao rígido modelo de unidade familiar monogámica que os aqueos tratavam de impor e que já tinha contagiado a tantísimos homens tracios, que a cada dia estavam mais rebeldes à sagrada tradição e que pretendiam as tratar como se fossem gregas. Enquanto elas seguissem dançando, a Deusa seguiria viva em Tracia.




Aglaonice, sempre no centro, deixava às vezes a flauta e elevava sua bengala-batuta, o tirso, enfeitado com atiras brancas de lana, que dirigia a cada mudança de tempo na cerimônia, acompanhando seu gesto com um selvagem bramido, o grito ritual que excita e anima, que era imediatamente obedecido. As bacantes giravam para um lado ou para o outro com perfeita sincronía quando ela o marcava, aumentavam sua velocidade como se voassem, ou ficavam imóveis como estátuas um instante, para seguir quando ela dava o sinal.

Ninguém como as mulheres para se pôr de acordo, perfeitamente harmonizadas, se eram dirigidas com graça e com firmeza desde o coração e desde o ventre. Em seu imaginación operativa, a Sacerdotisa Mãe sentia ligados a sua cintura todos os cordões umbilicais de seus ménades e as convertia em uma grande roda generadora de pura energia de sanación psicológica. 

Fazendo-se antena, raiz, fonte inspiradora, diretora de orquestra e dança, espelho e canal distribuidor de todas aquelas vibraciones de libertação que passavam através dela como de uma ponte e que lhe faziam sentir seu próprio poder e utilidade, imaginava como poderia chegar a crescer aquela força, como chegaria a influenciar e a contagiar às massas, no dia em que tivesse ao magistral príncipe Orfeo a sua disposição, como apasionado amante e perfeito complemento de seu carisma por uma parte, e como inspirado, inspirador e fascinante sacerdote-músico de Dionisio pela outra, para maior glória da Grande Deusa.


Cuidando de não deixar seu objetivo em mãos da casualidade, Aglaonice não duvidou em recorrer à Magia como reforço da consecución de seus desejos. A Magia da mulher, que criava a vida, também servia para criar qualquer outra coisa. Em um bosque frondoso às orlas do rio Hebro achava-se seu lugar de poder e o velho e forte árvore com o que durante muito tempo se tinha identificado e hermanado. Enfeitou-o com cabelos soltos e com pequenos objetos pessoais que tinha sustraído ao bardo e praticou nele e sobre eles, impregnándolos de seus próprios fluídos, as mais poderosas hechicerías que conhecia, a fim de que chegasse a se sentir louco por ela, que a visse como a mais bela e deseable das mulheres e que se estabelecesse entre ambos uma ligazón indestructible.





Durante muitas luas recolheu o sagrado orvalho, o asperjou com conjuros sobre seus amuletos e foi reforçando com sua concentração, muitas vezes em trance, e alimentando com sacrifícios e ritos, a semente astral do semeado na árvore, a fim de que fructificase no plano físico e no ciclo mais propício, depois de uma boa gestación.

62 (4)- TELA DE ARANHA-

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                                                                                         TELA DE ARANHA




A cachoeira era um verdadeiro santuário da Grande Deusa, como todos estes lugares costumam ser. Em um lugar assim as mulheres parecem encontrar em seu elemento natural, que se exalta com a umidade, com a semipenumbra, com os movimentos flexíveis e suaves e com o cheiro a terra molhada... bem como o masculino se realza no seco, o solar, o dinamismo contundente, o vôo para a altura e a esforçada marcha.


Nuas e entrando na lagoa, as três sacerdotisas apareciam ante os olhos de Orfeo e Museu como a consagración da feminidade, tal como os homens a sonham. Aglaonice nadou até o pé da cachoeira e escalou a rocha sobre a qual a água se precipitava. Quando ficou ali agarrada, recebendo prazenteiramente, com os olhos fechados, os chorros espumosos sobre as partes frontais de seu esbelto corpo de pantera, enquanto suas curvas sinuosas brilhavam ao sol, semejaba a deusa da sensualidade mesma. 


Após o banho, regressaram à grota, tocaram juntos várias canções e seguiram com os hinos do entardecer em ação de obrigado pelo dia decorrido, acompanhados por outros visitantes que chegaram justo então.

Orfeo arrematou-os com um poema improvisado, que era uma recomendação para a boa navegação pelos rios da Vida, tanto como pelos rios da Morte. Dizia que lá por onde vamos, encontramos dois tipos de fontes: as das águas do Esquecimento e as da Memória. Ante a dureza de certos momentos da existência, a maioria da gente prefere embriagarse e aturdirse com as primeiras, como forma de libertar da tensão, a dor e a culpa... mas só quem é capaz de enfrentar com valor e lucidez suas próprias contradições acaba passando ao outro lado do espelho de seu impureza e de seu negatividad aparentes, para entrar na esfera do Autorrecuerdo, onde todo se aclara ante o brilho imaculado do Ser que Somos, e onde as angústias desaparecem, como desaparecem as sombras ante a potência luminosa do amanhecer.

Aglaonice, que estava muito sensível, entendeu que o poema era uma metafórica alusão a que a embriaguez do método dionisíaco para esquecer as penas e desfrutar da vida a rienda solta não era mais que uma solução passageira, enquanto o autoanálisis profundo e sincero do método apolíneo visava ir à raiz do problema, ao compreender e a tratar de trascenderlo para sempre. Não quis permanecer na casa de hóspedes aquela noite e preferiu que descessem pelo caminho, alumbrándose com tochas.

Deixou que decorressem em vários dias antes de regressar à montanha com suas duas amigas, para que sua ausência fizesse mais grata a presença. A cada vez que subiam, se esmeraba mais na exquisitez das viandas que levavam (sempre vegetarianas, porque Orfeo se abstinha de carne) e na perfección da sincronicidad de suas flautas com a lira de Orfeo e com os instrumentos de seus outros acompanhantes ocasionais. 
            

Nas conversas com o bardo tentou manter-se sempre no novo papel pasivo, feminino, discreto, estimulante sem convidar, que os gregos estavam tratando de estabelecer como conveniente e até como normativo entre suas mulheres, renunciando à iniciativa direta e deixando, mais bem, que o varão desejado se fosse envolvendo, por si só, na teia de aranha que com paciência tecia.

Para o qual continha ante ele seus leoninos desejos de ação e de domínio, aos que concedia, no entanto, total desafogo nas noites seguintes, na companhía das suas acólitas, durante a Festa do Sagrado Frenesí.


62 (3)- AGLAONICE



AGLAONICE


Aglaonice estava fascinada pela extraordinária vibração de entusiasmo com a que a maestría de Orfeu tinha sabido elevar até os céus da emoção ao seu grupo. Ainda empregando a mesma música que ela, ele tinha-a enriquecido após só  uma audição, e sua segurança, sua carisma, seu virtuosismo criativo e seus múltiplos e sutís recursos sonoros estavam evidentemente bem mais desenvolvidos que os seus.
Imaginou no que podia converter-se sua comunidade de bacantes e sua obra espiritual com um colaborador assim ao seu lado. Ela tinha que ganhar-lho para servir juntos nàquela missão que a vida tinha posto em seu caminho: construir uma nova era na que a energia livre, informal e intuitiva da Grande Mãe, aliada à do olímpico Dionisio, voltasse a se situar no nível do qual tinham-a deslocado os deuses patriarcais... para suavizá-los, humanizá-los e construir uma sociedade na que a mulher recuperasse sua ascendência e sua autoestima e na que a força viril fosse canalizada ao serviço do Amor.

Orfeo viu vir para ele a Aglaonice, majestuosa na segurança do carisma que se desprendia da cada um de seus gestos e movimentos. Portava com elegancia uma copa de madeira olorosa finamente talhada e um odre de vinho. Pôs-lha diante e encheu-a. Com ela na mão, se acercou ao rosto do bardo e, o olhando de soslayo com seus olhos feiticeiros de esmeralda, bebeu ante ele um sorbo demorado, que lhe serviu para entornar as pálpebras e redondear os vermelhos lábios, como sem querer, em um gesto audazmente erótico e provocativo. Depois de aliviá-lo com uma de seus frescos sorrisos, dirigiu a ele ambas mãos estendidas:

-Bebe de minha copa, Orfeo –convidou-, comulguemos juntos, já que a ambos nos anima o mesmo espírito de Dionisio. 

Orfeo recebeu-a, fez um brindis com um gesto e acercou-a a seu nariz, mas não bebeu, porque o fazer seria aceitar um compromisso que sentia como demasiado explícito. Baixo o aspecto regiamente feminino daquela mulher, intuía o espírito de um guerreiro durísimo, dominante e manipulador, uma verdadeira amazona, uma poderosa aranha tecendo sua teia. Simplesmente fez-lhe honra ao convite, deleitando-se em olfatear o aroma do vinho.


-Acho que a ti te anima Dionisio bem mais que a mim, sacerdotisa -disse com um sorriso-. És uma mulher muito bela e uma extraordinária flautista. Mereces bem mais que o pouco que eu poderia compartilhar contigo. Faz favor, não te ofendas comigo e considera-me teu amigo. 



Ela ocultou sua decepção atrás de um sorriso artificial e recolheu a copa de suas mãos.
-Se não te apetece beber, eu farei-o e pelos dois.
Bebeu um longo gole. Depois deixou-a a um lado, olhou-o seriamente e disse:
-Em verdade és um grande mestre. Admiro a altura de tua arte e sento-me muito contente de ter-te conhecido, perdoa minha atrevimiento. Sim que gostaria cultivar de tua amizade e vir alguma vez a fazer música contigo.
-Não há nada que perdoar, teu atrevimiento alegra meu coração bem mais que o vinho; considera em tua casa e vêem a ela quando queiras. O mesmo digo para teus acompanhantes.

Tomou sua mão e a besó, depois pôs-se em pé e pegou sua lira. Falou alto, para todas as bacantes:
-Estou cansado e desejo retirar-me, dou-vos de novo as boas-vindas e as obrigado por vossa visita, belas senhoras; continuem com vossa festa e que sejais sempre assim de felizes, para felicidade dos demais. Meus amigos vos dirão onde podeis dormir, se quereis vos ficar. Boas noites.
Depois entrou na gruta e ao cabo de uns minutos saiu, carregado com uma manta, e perdeu-se entre as árvores do bosque.



Decorreu uma semana, Aglaonice não podia deixar de olhar sem desgosto para a alta cume do Rhodope desde a janela de sua casa no vale do rio Hebro. A cortês rejeição de Orfeo a sua torpe precipitação tinha ferido a fundo seu peito, que passava por todo tipo de violentas emoções, desde a ira até a autoconmiseração.



Olhou-se ao espelho e não gostou. Houve uma época em que ela tinha que tirar de acima aos muitos homens que a desejavam, e com muitas menos considerações. Mas o passo do tempo era implacável, seu antigo poder de sedução parecia já não lhe servir senão para comandar uma tropa de mulheres sozinhas, carentes, decepcionadas por múltiplas relações insatisfactorias com homens rutinarios e vulgares, aterrorizadas porque sua juventude e sua beleza começavam a se murchar, que se amparavam na religião da liberdade e a alegria para poder desamarrarse de seu vazio e de sua baixa estima na sagrada embriaguez e na cobertura anímica que presta a manada.

Voltou-se a olhar, ensayando gestos, poses, sorrisos, máscaras “Calou-te fundo esse músico, Aglaonice, não podes deixar de pensar nele. Maldita estúpida, como me lancei como uma louca... terei que regressar lá, com outra atitude. Não posso sacar ele do coração, tu vais ver quem sou eu, Orfeo –começou a desfazer seu penteado-. Talvez uma imagem diferente...” 


As ménades chegaram pouco antes do meio dia ante a grota. Desta vez eram só três: Aglaonice, outra mulher algo maior que ela e metidita em carnes, de mirada profunda e inteligente, que disse se chamar Metis, e outra mais jovem, com um corpo fino e flexível de danzarina e cara de estátua, um pouco inexpresiva, Hebe. Traziam flautas frigias de duplo tubo as três, algo de comida e bebida e um hatillo com uma muda de roupa limpa envolvida por um manto. Mas agora, a pleno dia, não pareciam as mesmas da primeira vez, senão três modestas estudantes de música que vão visitar a um professor. 

Vestiam túnicas brancas de verão até o joelho, calçavam sandalias de fitas, não levavam mal adornos, seus enfeites eram discretos e comportavam-se de uma maneira afável, mas tão pasiva e recatada que Orfeo e as duas pessoas que lhe acompanhavam -o mudinho algo atrasado que vivia com ele na grota e aquele outro efebo de cabelo longo e encaracolado que costumava tomar notas, chamado Museu, quem passava uns dias na casa de hóspedes- se fizeram mais amáveis e acolhedores do acostumado, para as fazer sentir entre amigos, a gosto, e para convidarlas a se expressar com a mesma espontaneidade que antes.
Quando recriou-se um bom clima de simpatia e fraternidad, Aglaonice disse que se tinham atrevido a trazer alguns platos de boa comida caseira para compartilhar e que gostariam muito passar de uma tarde tranqüila no monte, escutar outra vez a Orfeo, se fosse tão amável, tocar juntos e aprender algo dele.
Almoçaram, pois, em grupo sobre a erva, unindo a salada que tinham preparado para eles com os platos cozinhados pelas visitantes, que estavam muito bem apresentados e que sabiam verdadeiramente deliciosos. Bebeu-se vinho de uma maneira normal e moderada e em todo momento conseguiu-se um clima de amistosa e ligeira harmonia de grupo.
Após a refeição, o mudinho foi lavar as panelas e os demais ficaram conversando cordialmente, tumbados baixo a sombra de uma encina. O rapaz do cabelo encaracolado, Museu, era muito simpático e contou sabrosos chismes mundanos da capital de onde procedia. Como suas duas colegas estavam muito a gosto com ele, Aglaonice foi criando, pouco a pouco, um aparte com Orfeo.



-Foi impressionante –disse, com os olhos brilhando de admiração- como tu conseguiste elevar a vibración de meu grupo a outra noite Qual é o segredo de tua maestría? -Nenhúm segredo -respondeu ele sorrindo-: amor pelo que faço, gustoso trabalho, estudar e ensayar até que a lira ou a flauta em minhas mãos se voltam eu mesmo, me estudar e me esvaziar até que eu mesmo torno-me a própria música se tocando a si mesma, e depois a deixar fluir até onde ela queira.
-Assim de singelo... nada mais? -disse Aglaonice rindo com ironía- Todo mundo pode!
-Em realidade, todo mundo pode, creio eu –disse ele-, a cada um a sua maneira, cultivar e desenvolver até extremos muito elevados seus próprios talentos e tendências innatas: basta com saber, querer, ousar e calar, como sempre.




--Saber, querer, ousar e calar? -repetiu a sacerdotisa- Isso é um axioma hermético.

-O é, muita gente conhece-o, mas há que o aplicar –disse Orfeo-. Saber o que queres conseguir, o querer conseguir com muita vontade; ousar pôr toda tua concentração e todo teu esforço em isso de forma constante, a fim do tentar dia depois de dia; e fazer calar às constantes dúvidas, ansiedades, vacilações, sentimentos de impotencia ou de carência, queixas ou vaidades de tua ego, para seguir tentando-o com fé, como se já o tivesses conseguido dantes, até que em qualquer momento, inesperadamente, o consegues, igual que temos conseguido aprender a nos pôr em pé e a andar.



-Eu quero e ouso com força –cintilaram os olhos femininos-. O difícil para mim é calar, fazer calar às dúvidas, fazer calar à vaidade: insuficiência e prepotência.

-Esse é o balanço para os extremos que sai facilmente de todos nós, amiga, ficar curto, passar... a harmonia está no médio, não parada, senão dançando entre os extremos –confirmou ele-. Se dúvidas, lhe faltará a tua melodia a fluída brillantez da segurança, se passas de confiança egoica em ti mesma, resultará pesada e não alçará vôo. Precisa-se sair da roda do sobe e baixa, pôr-se acima de sua vaivén. Há que dirigir o vaivén da balança desde seu centro mais elevado, desde o fiel. E não desde um dos platillos ou o outro. Desde os platillos é impossível manter um movimento equilibrado.


-E isso como se faz?
-A mim me serve uma maneira, às vezes –respondeu o bardo-: rendendo a direção de meu jogo a meu centro mais elevado.
-
Já o faço eu também. Meu centro mais elevado é Dionisio. Todas as dúvidas de minha razão se dissipam nele.
-Eu tenho a suspeita, e espero que me perdoes -disse Orfeo suavemente-, de que Dionisio é um centro elevado, mas não precisamente o do fiel, senão o de um dos platillos: o da espontánea emocionalidad subconsciente. O centro elevado do outro platillo é Apolo, a sábia consciência intuitiva.

-Quem te parecerá então que sujeita o fiel da balança de onde pendem ambos? -disse Aglaonice desafiante- A Deusa?... ou Zeus?
-A Deusa e Zeus são os dois braços que sustentam os platillos. Também não são o fiel -respondeu o bardo-. Se queres pôr uma divinidad conhecida ali e não a teu próprio ser real diretamente, eu acho que poderia ser Atenea, que é a inteligência criativa de Zeus, e uma síntese, actualizada, dele e da Deusa, na que todas as qualidades femininas e masculinas, lunares e solares, conscientes e inconscientes, se fundem em uma supraconsciencia equilibrada, potente, bela e ativa.



-Não me inspira devoción nem confiança essa virgen orgulhosa com alma de homem. Fico com a Deusa e com Dionisio, que é o mais feminino dos deuses-. Afirmou com força Aglaonice
           

Orfeo deu-se conta de que ela se tinha atrincherado em uma posição fixa e renunciou a seguir discutindo por causa dos muitos símbolos superficiais do Único. Teve um silêncio. Ao cabo, Aglaonice perguntou-lhe se após ter viajado tanto, não se aburría de permanecer em uma gruta, naquele rústico lugar.

-Realmente não –contestou sorrindo-; qualquer lugar pode ser o centro do universo, se um sente a vida do universo nele... Não a sentes tu nesta montanha?




Aglaonice olhou em seu torno, alçando o peito -Claro que a sinto!... este lugar é um templo puro e sagrado da vida. 

-O mundo todo o é -respondeu ele-, mas nas montanhas se sente mais forte, mais puro. Quando eu viajava, tentava andar pelas montanhas ou regressar de vez em quando a elas, para recargarme. Esta montanha resume em si todos os lugares onde mais a gosto me senti em minha vida.


-Mas tu tens vivido aventuras e conhecido a muitas gentes muito interessantes Não jogas isso de menos?

Não, porque o vivi a fundo e porque sou livre para deixar as poucas coisas que aqui tenho e buscar o desconhecido de novo, se o desejasse... ainda que já não seria o mesmo, porque a cada idade tem seu próprio jogo e seus próprios reptos... Quanto às pessoas interessantes, não faz falta sair de aqui para as encontrar; já vês, tu tens chegado por teu pé a esta montanha e és uma pessoa interessante.

Ela se sentiu feliz, mas disimuló, tinha que ir devagar.
-Orfeo, eu sou uma pessoa muito vulgar, me refiro a essas gentes distintas que sabem apreciar verdadeiramente tua arte e o agradecer, que o podem aplaudir e recompensar como se merece Não é um desperdicio, para um músico de tua talha, viver assim, retirado? O mundo poderia estar a teus pés. Poderias ter quanto quisesses.

           -Aglaonice, para que esse mundo do que falas esteja a seus pés, um artista tem que pôr aos pés desse mundo, e quantas mais coisas possui uma pessoa, mais essas coisas o possuem e chupan sua energia. Se eu tivesse que deixar minha gruta agora, encontraria em seguida outra, em todos os montes as há. Se perdesse minha lira, cortaria madeira e em pouco tempo me faria outra; e em qualquer monte encontram-se, também, água e alimentos... Prefiro minha liberdade atual a viver em uma jaula de ouro na cidade, pendente de competir, de destacar, de mostrar-me e de manter os cambiantes favores do público e das modas.
-Mas um artista deve-se a seu público -insistiu ela- Pára que te deram os deuses esse talento? para só te escutar a ti mesmo, como um lobo solitário aullando no monte? Onde está tua utilidade neste mundo?




-Talvez os deuses não estão tão descontentamentos comigo –sorriu o vate-. O tempo todo estou cantando e tocando para as diferentes caras do Ser Universal que eles representam, canto dando obrigado pela vida e em honra a ela, canto para os deuses que residem nas gentes amadas e amigas que vivem comigo ou que vêm a me visitar, e canto para os deuses que me inspiram em meu interior e que me fazem sentir feliz e útil me inspirando e me ouvindo interpretar o que me inspiram.

Ela ficou sem saber que dizer “Oh, me encanta como és, Orfeo –pensou- és exatamente o tipo de homem com o que poderia me complementar para exteriorizar o melhor de nós dois ao serviço de nossa missão... só precisas que alguém te ajude a descobrir a melhor maneira de aplicar teus dons e tua força ao que esta época nos está pedindo...”





-Gostarias de encontrar uma maneira –perguntou-, na que tua música servisse para melhorar o mundo?
Ele voltou a sorrir e disse docemente, como quem fala de outra coisa:
-
Aglaonice... a mim me parece que tudo neste universo é a mesma energia vibrando no movimento rítmico que cria a vida universal... e que todas as expressões da vida dos seres, todas, influem sobre essa vibración e marcam seu tom, também a tua e a minha. Mas, ademais, todas aquelas expressões criativas que são conscientemente armónicas elevam ao máximo a beleza e o goze da sinfonía coletiva dos seres que conformam o ser do cosmos... e a boa música eleva-a mais e melhor que qualquer outra forma de expressão...
-... Excepto a expressão pura do amor-, arguyó Aglaonice.
-...Que também pode se expressar com música! -respondeu Orfeo rindo–... De modo que não desprezes, amiga minha, a utilidade, para o mundo, de um humilde músico que vive e toca retirado. Ele pode ser um sacerdote da Vida.
-Um sacerdote de Dionisio...- reconheceu ela, apreciativamente.
-Evoé! Mas Dionisio, para mim, Aglaonice, sendo uma expressão muito querida da Vida, um arquetipo de pura liberdade e alegria, não é mais que uma das múltiplas caras do deus que há por trás de todos os deuses. Não fico só com essa, às vezes preciso cantar à virtude luminosa e equilibrante de Apolo, ou à disciplina firme e decidida de Marte, ou à racionalidad ágil de Hermes, para não me ficar na pura esfera dos impulsos instintivos ou subconscientes... Todas as caras de todos os deuses são necessárias para que nós configuremos, misturando segundo nossas necessidades, a imagem do deus interior que, na cada momento, nos liga com o todo e dirige nosso rumo pessoal... Há vezes em que, inclusive, preciso lhe cantar a Hades.

-Hades? Esse é um deus de quem a maioria da gente prefere nem se lembrar -disse ela aprensivamente- Pára que lhe cantas?

-Para poder desfrutar mais e melhor da vida efêmera do corpo e da mente, neste único momento real em que ainda os tenho ligados a todo o que sou... A meu parece-me que Hades é o grande recordador da realidade, amiga.
-Por que?
-Porque pensar nele me centra no importante quando vêm a mim as preocupações... poucas das coisas que nos preocupam aparecem como importantes se um pensa que dentro de uma hora poderia perder seu corpo. Acho que aquilo no que eu usaria essa última hora, é o único verdadeiramente importante para mim.
-Eu a usaria para amar, Orfeo, para me dar toda, para me perder, para entrar no para além com toda minha consciência diluída no êxtase do amor... –disse a sacerdotisa com toda paixão- Em que a usarias tu?


Orfeo ficou pensativo um momento, como se estivesse concentrado em uma lembrança muito, muito profundo.
-Eu já tive essa experiência uma vez e o que mais almejava era precisamente isso: poder apagar minha tensa atenção, perder-me, diluir minha consciência vigilante no êxtase do amor e do reencuentro... e que fosse o que fosse depois... isso era Dionisio falando em mim. No entanto, uma voz mais forte animava-me a manter-me alerta, alerta, bem consciente, para poder acabar o começado. Aquela voz me urgía, com o maior ahínco e em nome do amor, a seguir acordo e ligado com meu objetivo até justo o instante final, agüentando o desejo de apagar e diluirme... essa era a voz de Apolo em mim.
-...E a qual das duas vozes fizeste caso? -perguntou Aglaonice. 


Antes de que Orfeo pudesse lhe contestar, seu diálogo foi interrompido por seus três colegas de siesta, que lhes propuseram alegremente ir tomar um banho à cascata. Levantaram-se pois, uniram-se a eles e começaram a caminhar atentos, agora, a qualquer outro assunto do que o grupo estava falando.